
Apoie
Falar sobre Belchior é, em resumo, contar a história de alguém que abandonou a faculdade de medicina (passaporte para uma condição de elite) para viver com muitas dificuldades no eixo Rio-São Paulo. A causa? Espalhar ao mundo a mensagem da novidade, da juventude, da crítica aguda, do ser livre e, sobretudo, da alucinação com o real. Com isso, Belchior eternizou-se como o marco da MPB, inaugurando um novo tempo com músicas que apresentam a vida como ela é, abandonando o fetiche do sonho tropicalista.
Mas quem ele realmente era? Como sua vida foi moldada no decorrer dos anos? Quem o influenciou? Quão realmente grande era sua inteligência? Aqui está!
Em 26 de outubro de 1946, nascia em Sobral (CE) Antônio Carlos Belchior, filho de Otávio Belchior e dona Dolores Fontenelle (por sinal, de ascendência francesa). Não possuíam alto poder econômico, mas sempre foram muito respeitados nas comunidades onde viveram.
A família era enorme. Belchior contava (em tom jocoso) que, somando os filhos dos dois casamentos do pai, eram 23 irmãos. Em certa ocasião, o cantor explicou que isso se deu porque seu Otávio era fã do jogo do bicho (são 25 bichos). Ele, Belchior, era o 13º, que correspondia ao galo. Por isso, dizia o pai, “esse menino vai viver de canto e beleza”.
Belchior e sua mãe, dona Dolores (autor e data desconhecidos)
A música fazia parte da família. Dona Dolores cantava no coral da igreja, o avô tocava flauta, os tios eram seresteiros e a casa sempre abrigava cantadores, violeiros e ciganos. O ambiente familiar e os cantos da igreja atraíam o menino Belchior, mas havia algo mais: o alto-falante da cidade, a voz de cristal, que constantemente tocava as músicas de Luiz Gonzaga. Juntamente com os Cânticos Espirituais de São João da Cruz, eram canções que fascinavam seu coração.
Belchior e seu pai, Otávio (autor e data desconhecidos)
Seu Otávio era um homem preocupado com a educação dos filhos e, para que os filhos completassem os estudos, decidiu que a família mudaria para Fortaleza. Em 1960 instalaram-se no bairro Parquelândia.
Belchior na formatura do Colégio Sobralense (Acervo do Estêvão Zizzi,
data desconhecida)
Belchior passou a estudar no Colégio Estadual Liceu do Ceará. Todos ficavam fascinados com um pivete do interior que conhecia a Bíblia e os romances franceses como ninguém, além de consumir muita literatura portuguesa (de Portugal).
O menino era inquieto. Eram constantes as fugas de casa. E onde estava? Ou no meio dos sanfoneiros, ou no meio dos tocadores do coco, ou estudando no mosteiro.
Abruptamente Belchior procura seu pai e lhe comunica sua amadurecida decisão: “Quero ser é frade, meu pai”. Seu Otávio não questionou e abençoou o futuro do filho.
É que na serra de Guaramiranga (CE) havia o mosteiro dos Capuchinhos, um centro de formação de frades construído em 1935 por religiosos italianos lombardos. A instituição o atraiu, pois era uma gigantesca universidade no Ceará que ensinava sobre teologia, filosofia e conhecimento científico. Esta abrangência no debate intelectual e a chance de ter uma condição social privilegiada (os capuchinhos tinham grande prestígio social e político) fizeram a mente de Belchior.
Convento da serra de Guaramiranga (CE) (autor e data desconhecidos)
É então que, em fevereiro de 1964, uma turma com 14 noviços capuchinhos iniciam seus estudos em Guaramiranga e entre eles estava o frei Francisco Antônio de Sobral, com apenas 18 anos. Já no convento, Belchior apresentava algumas marcas singulares. Mostrava-se extremamente inteligente, alegre e bem humorado, com uma facilidade incrível para escrever.
Frei Francisco Antônio de Sobral, numa visita do
presidente Castelo Branco (Arquivo Pessoal, data desconhecida)
"Frei Sobral era atento, disciplinado, fraterno e cortês. Recitava capítulos inteiros da Regra de vida (espécie de Constituição dos capuchinhos), todo o Testamento de São Francisco, longas passagens de Os Lusíadas, de Camões. [...] Exímio versejador, ele conseguia improvisar repentes por duas ou três horas seguidas, em tardes de passeio. Escrevia com grande facilidade."
- Jotabê Medeiros, livro "Apenas um Rapaz Latino Americano"
Quase três anos depois, Belchior concluiu que, mesmo sendo um estudante exemplar, esta não era sua vocação e decidiu pedir para sair do mosteiro. De lá saiu com uma ampla bagagem de filosofia, teologia, latim, italiano, noções de grego, cantos gregorianos e uma perfeita dicção que chegava a intimidar os interlocutores. Soma-se a isto a sua fluência em inglês e francês, aprendidos na época do colegial.
Em 1966, Belchior passou em primeiro lugar no vestibular para Faculdade de Medicina de Porangabuçu, em Fortaleza. Andava nos corredores feito um hippie, com bata branca, chinelos e bolsa de couro, e um violão. Por conta disto, arranjou problemas com professores e, após 7 anos de curso, abandonou a universidade para abraçar uma antiga paixão que renascia em seu peito: a música.
Belchior aos 23 anos (Arquivo Estêvão Zizzi, data desconhecida)
Inicialmente ele não cantava, apenas escrevia letras no famigerado Bar do Anísio, localizado na praia de Mucuripe. Para você que não sabe, o Bar do Anísio foi o maior celeiro artístico da música cearense. Vários universitários que posteriormente tornaram-se músicos de renome (Fausto Nilo, Fagner, Jorge Mello, Ednardo, Cirino e outros) começaram suas composições naquele espaço.
Fachada do Bar do Anísio (Arquivo Familiar, 1982)
E foi numa das mesas do Anísio que Belchior escreveu num guardanapo um clássico da MPB, Mucuripe, enquanto observava as jangadas que saíam de manhã e retornavam no fim da tarde. Ao terminar a letra, foi a um canto do bar e mostrou-a para Fagner que a levou para casa e, no outro dia, trouxe a música pronta.
Até o momento, Belchior já se mostrava um artista constituído, exercendo com maestria a pintura e a arte da composição. Ele sempre ficava recluso no quarto dos fundos da casa escrevendo canções e, por isso, tinha uma grande bagagem musical.
Em 1971, Belchior e alguns colegas decidem viajar para o Rio de Janeiro a fim de participar de um Festival Universitário, o qual revelara grandes nomes da MPB. Concorrendo contra Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, venceu o IV Festival Universitário de Música Brasileira com a música Na Hora do Almoço, interpretada por ele, Jorginho Teles e Jorge Néri, e com os arranjos de Fagner. Pela vitória, receberam o bandolim de ouro e 10 mil cruzeiros.
Belchior, Jorginho Telles (esquerda) e Jorge Néri (direita)
após vencerem o Festival Universitário (Arquivo Estêvão Zizzi, 1971)
Apesar da vitória, Belchior passou por maus bocados no eixo Rio-São Paulo. Não tendo onde ficar, dormia nas construções inacabadas e em cabarés, chegando a passar fome. Sua sorte foi ter conhecido Elis Regina, que o convidou para gravar umas canções em sua casa. O reconhecimento definitivo do cantor surgiu quando ela gravou Mucuripe e Como nossos Pais.
Como é costume do âmbito musical, Belchior começou a desaparecer da mídia com o tempo. Consta que em 2007 o cantor abandonou tudo o que tinha e "sumiu" juntamente com a esposa Edna Assunção, deixando para trás filhos, imóveis e produtores.
O Fantástico conseguiu localizá-lo em 2009 no município de San Gregorio de Polanco, no Uruguai. Ele falou sobre novos projetos, sobre a produção de novas músicas e que estava trabalhando na tradução de toda a sua obra para o espanhol.
Belchior em San Gregorio de Polanco, Uruguai (autoria e data desconhecidas)
Ainda hoje, não se sabe definitivamente o que motivou o suposto desaparecimento. Belchior estava afogado em dívidas resultantes de pensão alimentícia, estadia em hotéis, estacionamento e um processo trabalhista que já totalizavam R$1 milhão em indenização. Ele estava sendo procurado pelas polícias uruguaia e brasileira.
Belchior e sua esposa Edna Prometeu (autoria e data desconhecidas)
Todavia, é certo também que seu autoexílio foi consequência da escolha de não ser triturado pela máquina das grandes gravadoras. Belchior escolheu não conformar sua obra ao gosto dos produtores, impedindo que sua canção se tornasse mais um sucesso popular que emburrece as massas com letras vazias e ritmo dançante. A retaliação foi amarga: sarjeta, esquecimento, solidão.
Sua última aparição num trabalho musical foi em um DVD gravado em 2011 em conjunto com o pianista João Tavares Filho, material este que nunca foi lançado.
Numa manhã de domingo, dia 30 de abril de 2017, Edna Prometeu - companheira de Belchior - o encontrou morto na sala de estar da casa em que viviam, em Santa Cruz do Sul (RS). Ele morreu durante o sono ouvindo música clássica, confirmou a delegada Rachel Schneider.
Belchior estava com 70 anos e faleceu de causas naturais, mais precisamente, por causa do rompimento da aorta. Sua ex-mulher, Ângela Margareth, afirmou que o artista já havia tido um infarto. O corpo foi transferido para o Ceará e sepultado em Sobral, sua terra natal.
Mulher de Belchior, Edna (de óculos escuros) e familiares
no enterro do cantor (Helene Santos, 2017)
Encerrava ali a carreira de um dos maiores nomes da MPB, alguém que não anelava a fama e sim a glória: a glória de mudar pensamentos e fazer parte da vida daquele que vive o que ele viveu. Era ele mesmo quem cantava:
“A minha história é, talvez
É talvez igual a sua [...]
Eu sou como você
Que me ouve agora.”
- Trecho da música Fotografia 3 x 4
Mas o impacto de sua obra não cessou ali. Belchior é eterno, pois sua arte versa sobre as dores do homem. Por isso, não é difícil se encontrar em suas letras. O empresário que diminui seu amor à medida que multiplica, o corpo que cai do oitavo andar, o solitário que sobrevive no quarto de uma capital, os humilhados das praças sobre jornais, o imigrante nordestino desnorteado no sudeste, enfim, qualquer alma vazia têm um lugar na imensidão da "mundo belchioresco".
Se os sucessos atuais têm datas de início e fim definidas, Belchior é a força do som sem validade. Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, sua voz rouca continuará ecoando e cortando a carne de muita gente.
Apoie